Indulgência. Uma palavra forte e que marcou negativamente a história do cristianismo. No século XVI, tratava-se de um pedaço de papel emitido pela igreja católica, que supostamente livraria o fiel dos seus pecados. Não obstante, o recebimento desse papel não era uma graça da igreja. Era preciso que o individuo pagasse uma quantia em dinheiro, uma espécie de “livramento pago” que o fiel fazia pelos seus pecados.
Contra essa abominável prática, Lutero escreveu 95 teses e as pregou na Catedral de Wittenberg, num enfrentamento que anos à frente iria culminar na maior reforma religiosa da história humana. Algumas de suas teses merecem ser citadas a título de exemplo:
41: “Deve-se pregar com cuidado sobre as indulgências apostólicas, para que o povo, equivocadamente, não as entenda como sendo preferíveis às outras boas obras do amor.”
43: “Deve-se ensinar aos Cristãos, que aquele que vê alguém em necessidade e o negligencia, e gasta [seu dinheiro em indulgências], não adquire indulgências do Papa, mas a ira de Deus.”
53: “Inimigos de Cristo e do Papa são aqueles que propõem que a Palavra de Deus seja de todo silenciada em algumas igrejas, de modo que as indulgências possam ser pregadas.”
É claro que após o período medieval, o pedido de desculpas pelo ocorrido por parte do Vaticano e a exposição crítica desse tema, iniciada por Lutero, essa prática teve que ser reformulada se quisesse subsistir. E foi o que aconteceu. Já no século XVII, a indulgência passou também a consistir em obras de caridade ao invés de doações materiais, que ainda eram possíveis se fosse para esses fins.
Nos tempos atuais, a indulgência ainda existe como “perdão ao cristão das penas temporais devidas a Deus pelos pecados cometidos, mas já perdoados pelo sacramento da Confissão, na vida terrena”. A igreja continua ignorando o valor da obra da cruz e insistindo em dizer que o cristão tem que pagar um preço por seu pecado - como se Cristo já não tivesse pago um preço de sangue (Mateus 8:17; Isaías 53:4-5) - sob o argumento de que o perdão obtido pela confissão não significa a eliminação do mal causado como conseqüência do pecado já perdoado. Essa prática da doutrina católica, em sua essência, atribui uma competência aos padres de perdoar pecados e estabelecer penas, muitas vezes baseadas em vãs repetições (Mateus 6:7). Estabelecendo uma comparação com o Direito Penal brasileiro, o sacerdote católico age nas atribuições completas de um juiz criminal. Julga a atitude do réu e estabelece a pena que, depois de cumprida, limpa a ficha do fiel, ou tapa os buracos que o pecado dele deixou. Uma verdadeira impropriedade, já que a Bíblia afirma que Deus é quem julga, vivos e mortos. Se é Ele quem julga, só Ele pode estabelecer penas. Jamais o homem pode se imiscuir nessa função (Atos dos Apóstolos 10:42; Tiago 4:12; Romanos 14:10). Os próprios romanos, ao defenderem essa prática, não encontram nenhum respaldo bíblico para justificar tal atitude. Lendo alguns sites que defendem a indulgência atual, não encontrei em nenhum deles algum versículo bíblico que justifique ou ao menos cite uma prática semelhante entre os apóstolos. Uma prova de que as indulgências, ainda que sem os excessos medievais, não passa de uma doutrina puramente humana.
Mas os séculos se passaram. E a indulgência católica se multiplicou assim como o cristianismo, assumindo diferentes faces. E a mais preocupante delas está bem perto de nossos olhos. Primeiro, vejamos o que diz a Bíblia.
“E também houve entre o povo falsos profetas, como entre vós haverá também falsos doutores, que introduzirão encobertamente heresias de perdição, e negarão o Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina perdição. E muitos seguirão as suas dissoluções, pelos quais será blasfemado o caminho da verdade. E por avareza farão de vós negócio com palavras fingidas; sobre os quais já de largo tempo não será tardia a sentença, e a sua perdição não dormita.” (2 Pedro 2:1-3)
Como os medievais, temos nos dias de hoje homens que se usam dos recursos da pregação para colher frutos de sua ganância e avareza. Como os homens do passado, que diziam ter o poder de expiar a culpa de um fiel por dinheiro, os homens de agora, com nível não menor de certeza, garantem ter o poder de abrir as janelas dos céus sobre a vida financeira daqueles que seguirem suas receitas de prosperidade. E os métodos são os mais variáveis possíveis. Citarei apenas dois exemplos aqui, omitindo os nomes, para que não suscitar a polêmica entre leitores que possam ter em grande estima algum desses “pregadores”.
O primeiro deles é de um pregador internacional. Famoso por ser um dos grandes oradores dos Estados Unidos e no meio evangélico por sua sabedoria e por ter a chamada “unção da prosperidade” (um tipo de dom que, assim como a indulgência, não encontra nenhum paralelo na Bíblia), ele dá receitas de como alcançar o enriquecimento. Quando ele esteve em minha cidade, tive a oportunidade de ir ao primeiro dia de uma Conferencia em que ele ministrava. Não senti a menor vontade de voltar nos dias seguintes. Já no primeiro dia ele já estabeleceu uma determinada (alta) quantia e determinou que todos os que doassem aquele valor para o ministério dele, teriam a mesma “unção” que estava sobre a vida dele. Ora, além de incentivar o mesmo erro de Simão, que pecou ao tentar “herdar” os dons dos apóstolos através do seu dinheiro (Atos dos Apóstolos 8:18-19), esse pregador atual ensina algo semelhante, ao enganar os que o ouvem ao afirmar que tem o poder de transferir a unção que está sobre sua vida a todos quantos quiserem e que ainda pode estabelecer um preço para isso. Além disso, esse mesmo homem possui diversos livros, a maioria deles ensinando como ser rico. Como se esse fosse o plano de Deus para todos e bastasse apenas seguir “receitas prontas” para conseguirmos.
Um outro famoso pregador pentecostal brasileiro não fica muito atrás. Ele garante o milagre financeiro a todos aqueles que doarem R$ 7,00 e fazer uma campanha de oração num horário determinado do dia, estipulado por ele. Citando distantes exemplos do Velho Testamento, ele argumenta que todo milagre de Deus requer que seja seguida uma instrução (isso me parece diversas coisas, menos um milagre divino), que a instrução dele é profética e fará com que seja operado o milagre na vida de todos aqueles que a seguirem.
Os exemplos não param por aí. Diversos outros pregadores propõem ofertas milagrosas, contribuições proféticas, unções do dinheiro e tantas outras invenções heréticas. Citar todas as conhecidas nos faria ter páginas e páginas para serem lidas. Mas paremos por aqui e passemos à seguinte pergunta: em que essas práticas são menores ou menos graves do que a medieval venda de indulgências? Confesso que a meu ver, não há nenhuma diferença.
O pior disso tudo não é pelos que falam, mas pelos que escutam. As pessoas se prendem tanto a uma idéia fixa de prosperidade financeira, que não fazem nenhuma análise, seja bíblicamente crítica ou racional, daquilo que estão fazendo, na simples crença de que terão a benção financeira. Parte disso em razão da maioria estar presa ao evangelho ao conformismo de um evangelho voltado quase que exclusivamente para resultados financeiros. Muitos se orgulham por sempre aderirem a qualquer tipo de ofertas alçadas (o que não é errado, dependendo da motivação), ou porque tem em seus quartos o lenço da prosperidade, o sal que espanta demônios na cozinha, e o óleo da unção das bençãos financeiras em suas salas. Mas mesmo portando um verdadeiro arsenal de “simpatias cristãs”, ainda se confundem ao serem questionadas do porquê de ainda não terem se enriquecido.
A igreja cristã hoje pratica um tipo de indulgência muito mais sutil e por isso bem mais perigosa. Lideres praticam táticas obscuras de arrecadação de dinheiro, apesar de não etiquetar os valores. Muitos dizem aos fiéis para que dêem o quanto quiser, mas a incisão dos argumentos, ás vezes embasados em versículos bíblicos totalmente descontextualizados, fazem muitos a acreditarem que a forma de arrecadação está totalmente de acordo com a Bíblia e que quanto mais eles ofertarem, maior será a chance deles ganharem mais.
Não se ensina nas igrejas que Deus não vai dar riqueza financeira a todos. Alguns podem dar até tudo que têm que ainda assim jamais enriquecerão. Até porque, a maioria dos que se dispõem a dar tudo para ficarem ricos, são os que primeiro deixariam a dependência de Deus e a comunhão na igreja caso se enriquecessem. Exatamente por isso, por não ser um Deus que se contradiz, o Senhor jamais prometeu ao seu povo que todos seriam ricos. A Bíblia diz sim, através do salmista, que este nunca viu o justo mendigar o pão (Salmos 37:25). E pára por aí.
A triste verdade é que tem gente demais na igreja buscando a bijuteria (o dinheiro e as bênçãos financeiras) e esquecido a verdadeira jóia rara que é a sabedoria e a revelação do incorruptível evangelho de Cristo. Como deixado por Lutero em sua tese de número
“Porque o amor ao dinheiro é a raiz de toda a espécie de males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores.” (1 Timóteo 6:10)
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